17/07/2014

O Jardim

Sentado no carro, viajas sem sair do sítio, de olhos fixos na janela. Não sabes se olhas para a janela ou pela janela, para a paisagem que corre do lado de fora, na direcção contrária à tua. Da mesma forma, não sabes o que sou eu. Mas sentes-me, e de certa forma és eu, ou eu sou tu, pelo menos em parte. É por isso que posso dizer que sou eu que olho pela janela, ou talvez para ela, e vejo o mundo a fugir lá fora.

Os olhos que uso são os teus, os meus, os nossos. O cenário que vemos é igual a tantos outros, de outras tantas viagens que já fizemos. Temos a cabeça encostada, a sofrer com as leves pancadas causadas pelo mais pequeno dos solavancos. Ocasionalmente, um carro que passa tapa-nos a vista, mas não damos importância. A vista não é nada de especial.

Antigamente, quando as pessoas tinham momentos como este, aproveitavam para pensar. Estes momentos escasseiam hoje em dia, e se calhar é falta de hábito, mas temos aqui um à nossa disposição e a tua vontade é desperdiçá-lo.

É neste momento que me abstraio do facto de ser tu e de seres eu e te observo com os olhos da tua mãe, que vai a conduzir e olha para ti pelo espelho retrovisor. Aquilo que vemos é um filho aborrecido, de olhar baço e fixo no vazio. Podíamos chamar-te, mas tens os auscultadores enfiados nos ouvidos, provavelmente não ias dar por nada. Suspiramos e voltamos a prestar atenção à estrada. Pensamos em como gostávamos que fosses mais feliz, menos melancólico, mais activo. E passados dois minutos pensamos em como não nos podemos esquecer de marcar a ida ao cabeleireiro, e de como…

Incrível. Não consegui suportar mais a consciência daquela mulher que se diz tua mãe. Por mais vazio que aparentes estar, prefiro ser tu. Podia ser o teu pai, mas esse dorme, no lugar ao lado da tua mãe, mesmo à tua frente. Durante o sono, eu não existo.

Mas agora olho novamente pelos teus olhos, que começam a ameaçar fechar-se de sono. A paisagem continua a passar por nós, assim como os carros, a primeira numa direcção, os segundos noutra, e nós imóveis. É claro que sabemos perfeitamente que estamos a andar, mas não é isso que sentimos. E é isso que importa, porque…

Um carro. Mais importante que isso, um pensamento teu, genuinamente teu, brusco e repentino. Um carro. Um carro com uma rapariga lá dentro, sentada no banco de trás, e que cruza o olhar com o teu. Está tão mortiço quanto o teu, mas no preciso momento em que o cruza contigo, e nos poucos segundos em que o contacto dura, os seus olhos alegram-se. Ela sorri-te. Depois fica para trás.

Só agora que ela desapareceu é que reparas no seu cabelo preto e nos seus olhos verdes, uma combinação invulgar. Era uma rapariga bonita, que por algum motivo se alegrou ao olhar-te nos olhos, e te sorriu. Sorris para ti próprio, não o sorriso triste que costumas exibir, mas um sorriso genuíno. O olhar com que agora atravessamos a janela já não é um olhar baço, mas um olhar activo, vivo, que não se deixa prender no vazio e vagueia pelo constante movimento do mundo que passa.

Tenho dificuldade em dizer o que vemos e o que vês. Porque há uma diferença. Aquilo que vês é por uma vontade própria que eu não posso controlar de forma alguma. Aquilo que vemos é aquilo que tu vês sem querer, aquilo para que olhas mas não vês.

Neste momento, animado pelo sorriso da rapariga, vês os carros que passam, mas não vês a paisagem. Concentras-te nos passageiros, numa busca semi-inconsciente de outra rapariga invulgarmente bela que te sorria e à qual possas retribuir o sorriso, e ignoras as nuvens que passeiam no céu. Passaram três carros, e agora que não tens nenhum à frente, focas o olhar na paisagem e vês finalmente as nuvens, aquelas grandes massas brancas que te sobrevoam e a tudo. Perdido em contemplações, não reparas nos carros que recomeçam a passar, em rápida sucessão. Nenhum leva uma rapariga que te pudesse sorrir, mas para que precisas disso quando tens as nuvens?

Este pensamento foi teu e isso deixa-me de alguma forma feliz. Sim, foi o meu consciente que se intrometeu no teu subconsciente e te estimulou o suficiente para pensares que preferes a visão do céu inundado de nuvens ao sorriso de uma rapariga, mas o pensamento foi teu. Este pensamento leva-te a outros, porque é que o céu é azul?, de que são feitas as nuvens?, uma cadeia de perguntas para as quais não tens resposta, pelo menos de momento. Como é que eu posso fazer-te perceber que estás no caminho certo, e que o deves forçar? Que essas perguntas sobre o céu e as nuvens são pertinentes e importantes, que as memórias que isso te traz de quando eras mais novo são igualmente pertinentes, que os gritos que estás a ouvir dentro da tua cabeça, lembrados vivamente de todas as vezes que o teu pai se chateou contigo quando eras criança, são ainda mais importantes, como…

De repente, vemos o céu. As nuvens continuam o seu trajecto, mas o teu olhar já não as segue. Em vez disso, o nosso olhar está preso num ponto fixo do azul imenso acima de nós. As memórias foram demasiado fortes, demasiado depressa. Como qualquer pessoa, não gostas das lembranças mais desagradáveis, e não percebes que elas não são erradas.

Mas não és o único que não percebe alguma coisa. Eu também não tinha percebido que além de olhares os carros e ignorares o céu, ou olhares o céu e ignorares os carros, também olhavas o mundo e ignoravas a morte cá dentro. A única morte que não me anula por completo, a da mente.

Ficamos com os sentidos embotados e os olhos baços. Olhamos para fora mas o que vemos são as reminiscências cá dentro, a vez em que o teu pai te bateu por estares a fazer uma birra, o dia em que a tua mãe se esqueceu de te ir buscar à escola, o intervalo em que a rapariga que gostavas há dois anos te rejeitou… É isto que te mata, e tu não percebes isso.

Eu compreendo que seja difícil, até porque tu achas que percebes, ficas na ilusão e não percebes realmente. O que tu achas é que essas memórias te matam. São elas que te causam dor, que te fazem ter maus pensamentos e, portanto, deduzes que são elas o que está mal. É por isso que as evitas o mais possível, e é também por isso que não as consegues evitar e acabas sempre por ter momentos como este, em que te magoas de livre vontade, sem teres noção disso. Mas como é que eu te posso fazer ver que estás errado? Que não são essas memórias que te matam, mas sim a forma como olhas para elas? Não aquilo de que te lembras, mas exactamente a forma como te lembras?

Enquanto não encontrar forma de fazer isso, ou não chegares lá por ti próprio, a única coisa que posso fazer é ver o que vês, sentir o que sentes, e tentar que penses o que eu pense. Se te conseguir influenciar minimamente, talvez percebas. E depois de perceberes o que estás a fazer mal, talvez consigas começar a perceber-me a mim, e aí o meu objectivo estará cumprido. É uma hipótese pequena, mas não a posso simplesmente desperdiçar.

Baixamos o olhar do céu, que já nos doía o pescoço, e fixamos o olhar de forma automática na paisagem que está para lá da estrada. Vários tons de verde e de castanho, com manchas indistintas de outras cores espalhadas por todo o lado. É isso que vemos. Isso e um grande aglomerado de pequenas manchas coloridas sobre um fundo mais claro, ainda indistintas lá ao longe. O nosso olhar aviva-se e é agora teu. Observas as cores ordeiramente circunscritas num grande rectângulo, a uma certa distância daquilo que parece ser uma aldeia. Na tua mente já decidiste que o que vês é um jardim, um grande e bem cuidado jardim que por alguma razão os habitantes daquela aldeia mantêm.

Sorris. Não costumas pensar muito nessas coisas, mas a existência daquele jardim deixa-te feliz, embora não tenhas bem noção do porquê, o que me agrada. A felicidade não foi feita para ser percebida, mas sim para ser sentida. É por isso que distinguimos pensamentos de sentimentos, e ambos de sensações.

Continuas a olhar para o jardim, de certa forma ansioso por ficares perto o suficiente para o veres com detalhe. Já consegues imaginar os canteiros organizados por cores, ou por tipos de flores, talvez ambas as coisas, rodeados por pequenas cercas de madeira e tapetes de pétalas caídas. O branco que vês por entre as cores podem ser lajes que permitam aos habitantes passearem pelo seu jardim sem o danificarem.

No fim de cada dia, um grupo de habitantes iria percorrer o jardim, varrendo as pétalas, limpando as lajes, ajeitando as flores e regando os canteiros. E no dia seguinte um novo grupo iria remover as flores estragadas, mortas ou ressequidas, para deixar o jardim absolutamente incólume e pronto para mais um dia de visitas e de passeios. Ocasionalmente, os habitantes iriam deixar forasteiros percorrer as pequenas alamedas floridas, para que também eles pudessem sentir os odores que se desprendiam de cada canteiro e talvez tivessem um pouco de inveja dos habitantes que, orgulhosos e vaidosos, se iriam limitar a exibir a sua obra um pouco mais.

É assim que imaginas o jardim e o seu dia-a-dia, ainda sem saberes se é de facto um jardim. Olhando pelos teus olhos, à distância a que te encontras, concordo contigo, parece de facto um jardim, e tão cheio de Vida como tu deverias estar. À medida que o carro se aproxima, começas a imaginar rápidos cenários em que tu és o protagonista que percorre o jardim, tão belo e imaculado como sempre, vigiado pelos habitantes e pelo seu orgulho, em busca da tua amada, que talvez seja a rapariga de cabelos negros e olhos verdes de há pouco, ou talvez seja outra rapariga que desconheces ainda. Mas se calhar não andas à procura da tua amada, mas sim de um lugar vazio para plantares o teu próprio canteiro, com flores que trouxeste de longe, desejoso de que figurem naquele jardim que para ti já é o Jardim.

O carro aproxima-se o suficiente e os teus olhos arregalam-se, pois o Jardim que observavas e com o qual já sonhavas acordado é na realidade um cemitério. A primeira coisa que te passa pela cabeça, é como é que é possível que uma aparência tão bela e tão cheia de vida esconda algo como um cemitério? Não compreendes o porquê de tanta cor por entre os mortos, a razão das flores arrumadas em cima das campas, o porquê de teres visto um jardim onde está um cemitério.

Daqui.

Como é que te podes ter enganado tanto?, perguntas tu, enquanto eu espero que consigas perceber que não te enganaste assim tanto, pois um cemitério não é mais do que um jardim, em que em vez de flores há paz. No Jardim não se deitam sementes à terra, mas corpos, é verdade, mas aquilo que se está a plantar não são árvores, flores ou plantas de qualquer espécie, mas paz, e não para os que partem, mas para os que ficam.

Mas noto que a tua visão continua a ser tua e não nossa. A revelação chocou-te, mas não foi o suficiente para te afugentar para dentro da tua carapaça imune a mim. E continuas de olhos fixos no Jardim. Não desvias a cara nem deixas embotar os sentidos, despertos pelo autêntico sonho acordado do Jardim. Vês a tua suposta amada com os cabelos negros a tremerem e os olhos verdes cerrados com força, tristeza salgada a verter abundantemente. Encontraste-a, por fim, mas não estás num cenário feliz, estás num cemitério, e ela está ali a chorar a morte de alguém. As flores que tens na mão são as cinzas de alguém que prometeste depositar ali, vieram na mesma de longe e tens o mesmo desejo de que figurem ali, no Jardim. Encontras o lugar apropriado, baixas-te e depositas as cinzas, que são de imediato varridas pelo vento que se levanta. Atrás de ti está a rapariga, ainda a chorar. Sentes-te a ser arrastado pelo vento, desagregado em milhares de pequenas partículas de pó cinzento, e percebes que ela chora por ti.

Sem que o queiras, uma lágrima cai-te pela cara abaixo. Todas as imagens que tinhas imaginado fugazmente estavam agora transformadas em imagens de dor e sofrimento, e não consegues lidar com isso. Onde antes vias um jardim, belo como nenhum outro, um lugar de felicidade e de pureza, bem tratado e asseado, com pequenas alamedas floridas que podias percorrer em busca de alguém ou de alguma coisa que apenas te ia trazer amor e felicidade, vês agora um sítio de morte, de beleza triste e decadente que os habitantes da aldeia tentam contrariar com as flores de cores vivas, mas que acabam por morrer como qualquer outra coisa viva.

Tinhas conseguido despertar, ainda que por momentos e não completamente, do teu torpor de sentimentos e tinhas-me sentido por instantes, até ao momento em que foste confrontado com a realidade e não foste capaz de optar pela melhor forma de a encarar. Agora choras silenciosamente, pois sabes, ou achas que sabes, que o mundo não vale a pena. Já nem sonhar te é permitido. Aqueles vagos momentos de felicidade não passaram de uma ilusão, pensamos nós, e é nesse momento que me apercebo que estou quase a perder-te. Já consigo ver pelos nossos olhos e não meramente observar pelos teus.

Limpamos as lágrimas, antes que alguém dê por isso e começamos a fechar os olhos. Sentes-te derrotado e esse sentimento é tão forte que se alastra a mim. Agora sou eu que me pergunto como é que o que acabou de acontecer é o suficiente para te vencer, mas um vislumbre pelas tuas memórias responde-me à pergunta. Já passaste por muito. Ilusões de felicidade não são para ti, já tens noção que isso é uma coisa que não existe. Já não te lembras de estar verdadeiramente feliz, e cada vez vês menos possibilidades de isso voltar a acontecer. Queres desistir.

Estás quase a adormecer, mas um solavanco mais forte do carro acorda-te mesmo a tempo de lançares um último olhar na direcção do Jardim, um olhar esperançoso de ainda ver algo que te tenha escapado e que te prove que estás errado, mas abandono-te rapidamente, pois o que viste provou-te que estavas certo e desististe de mim.

Aquilo que viste fez-te deixar definitivamente de Viver para passares simplesmente a sobreviver, e quem diria que um momento tão mundano como este poderia ter uma influência tão grande em alguém? A verdade é que não foi um momento assim tão mundano, pois aquilo que viste também me fez vacilar por breves instantes: no último olhar antes do carro ultrapassar o Jardim, com uma última lágrima, reparaste que o cemitério é maior que a aldeia.

08/07/2014

Assunto: Não sei que diga...

De: Rui
Para: Beki
Data: 06/07/2014 às 00:42

Cheguei agora a casa. Envio-te também a transcrição do guardanapo que encontrei hoje. Estava num armário nos laboratórios de som e imagem, fui lá falar com esse tal Sneaky e aproveitei para dar uma vista de olhos e encontrei isso e...

Desculpa lá os atropelos gramaticais, mas não estou em mim. Já tentei eu próprio ligar para a Alice, mas bati na mesma parede: uma mensagem gravada a dizer que ela está nas Maravilhas. Não sei quando foi a última vez que falei com ela, mas lembro-me da conversa como se tivesse sido ontem. Deve ter sido uma ou duas semanas antes de te encontrares com ela.

Não tínhamos combinado nada. Dei com ela numa feira de livros usados, muito concentrada a admirar um livro volumoso de mil oitocentos e qualquer coisa sobre ervas medicinais. Comentei casualmente que mais valia tomar uma aspirina e abrir o Google, mas ela começou a barafustar que eu não entendia, que ninguém entendia, e parecia pronta a esborrachar-me o nariz com o calhamaço quando se apercebeu de quem eu era.

Se conseguisse descrever satisfatoriamente a fúria que lhe vi no olhar e a forma como esmoreceu e se apagou completamente, escrevia um livro. Foi como ver uma onda prestes a abater-se sobre nós a revelar-se uma fina parede de neblina. Fiz um qualquer comentário sarcástico e convidei-a a dar uma volta por ali. Ela pareceu mais cansada do que nunca, largou o livro e acedeu.

Agora não me perguntes como, mas acabamos a debater a necessidade de um ser divino não precisar realmente de existir para ser real. Eu nem sei bem como fomos parar a isso, mas também nunca sei como é que as minhas conversas com a Alice fluem. São sempre fascinantes, isso sim.

O que interessa é que no fim usei um argumento de que ela não gostou. Qualquer coisa como "se existe algum tipo de deus, como é que não há nenhuma prova?" Começou a aumentar o tom de voz, a gesticular, a ficar vermelha, vi a fúria a ressurgir nos seus olhos claros e antes de ter hipótese de a acalmar, ela virou costas e desatou a correr por uma ruela. Escusado será dizer que com aquela agilidade de bailarina rapidamente a perdi de vista e nem tentei correr. Liguei-lhe no dia seguinte, mas ela limitou-se a desligar-me o telefone na cara.

Assumi que se tinha chateado e deixei andar. Vi-a algumas vezes na rua, mas ela ignorou-me de todas as vezes. Não liguei mais ao assunto, que tenho pouca paciência para estas coisas, e já me tinha esquecido do assunto até ler a tua história. Peguei logo em mim e fui à faculdade dela tentar encontrar esse tipo, o Sneaky, que não me disse nada de novo mas que me deixou dar uma vista de olhos à procura de nem sabia eu bem o quê. Encontrei o guardanapo, rabiscado e rasgado num canto. Já fui a todos os sítios que ela costuma frequentar e só consegui encontrar pessoas que a viram pela última vez há cerca de um mês.

Não sei o que achar! Mas acho muito estranho que depois da nossa conversa ela te tenha dito que tinha algo para te mostrar e depois tenha ido buscar um microfone. Tenho medo que ela tenha feito alguma loucura, Beki. Achas que ela se terá atrevido a tentar? Nem tenho coragem de o dizer. Ainda tens a chave da casa dela? Podes lá ir e ver se... Se o livro ainda lá está? Depois diz qualquer coisa e tem cuidado.

Rui Bastos

01/07/2014

Assunto: desabafos de uma amiga preocupada (urgente! )

De: Beki
Para: Rui
Data: 01/07/2014 às 22:27

Rui, 

Vou passar à frente as boas maneiras, nada de "tudo bem, como estás", o assunto é sério: acho que a Alice desapareceu. 

Vi-a a última vez vai para um mês, fomos tomar um café ao Brasileira, eu pedi o meu com leite, ela pediu o dela curto, o habitual. Mas havia qualquer coisa que não batia certo. Tinha umas olheiras que lhe chegavam às bochechas e parecia mais pálida do que o costume. Perguntei-lhe se estava tudo bem, respondeu-me que sim, mas as mãos irrequietas ora amarrotavam a toalha da mesa, ora desfazia em bocadinhos os guardanapos de papel. De vez em quando olhava por cima do ombro, como se alguém lhe tivesse tocado. Virava-se num salto, verificava que não tinha sido ninguém e voltava a olhar para mim. Por volta das oito horas saímos do café, eu preparei-me para começar a caminhada de regresso a casa, sabes que ela mora relativamente perto de mim e fazemos sempre parte do caminho juntas, mas nesse dia ela virou-se na direcção oposta. "Vou de autocarro", desculpou-se. Prometeu ligar-me daí a dois ou três dias, que tinha qualquer coisa para me mostrar. "O que é?", perguntei, mas ela não se descoseu, surpresa é surpresa. 

Desde aí que não sei mais nada dela. Tentei ligar-lhe mas quem me responde é o atendedor de chamadas "daqui fala a Alice, estou nas Maravilhas, deixe mensagem após os sinal, biiip". Ao fim de duas semanas comecei a inquietar-me, fui à faculdade, os colegas dizem não a ter visto - excepto uma pessoa. É um tipo esquisito, cabelo comprido escorrido para a frente dos olhos, chamam-lhe o Sneaky. Ele costuma estar sempre nos laboratórios de som e imagem, diz que está a fazer um documentário dobre a actividade reprodutora dos coelhos como forma de comparação à actividade sexual humana e possíveis implicações para a sociedade - pessoal de artes, quem os entende? Continuando, o Sneaky diz ter visto a Alice no laboratório: entrou, pegou num microfone e saiu logo. Pelos meus cálculos isso deve ter sido um ou dois dias depois do meu último encontro com ela.

Onde está a Alice, Rui? Porque motivo não atende o telemóvel? Será que tem alguma coisa a ver com aquilo que tinha para me mostrar? E para que queria ela um microfone? Se souberes de alguma coisa, o mínimo sinal, escreve-me. Estou preocupada.

Até breve,

Beki