23/06/2014

Miseráveis II


Naz Mina Mert

Duzentos o serviço completo”, disse a voz fria de Isabella. Era só mais um cliente à procura de sexo fácil. Caro, mas fácil.

“Dou-te cento e oitenta”, respondeu o homem, claramente desesperado, a voz a tremer. A sombra de Isabella acha-o uma criatura frágil, mas a fragilidade também lhe parece demasiado óbvia. Um homem pobre, desesperado e infeliz, um homem em busca de amor, por mais fugaz que seja, um homem que sai à noite para visitar prostitutas e não se queixa do preço demasiado alto. Um miserável.

Misturando-se com a escuridão dos corredores do bordel, a sombra da prostituta começou a esticar e a retrair os seus filamentos negros. Estava nervosa. Isabella era o seu corpo e quem lhe emprestava as formas exageradas e acentuadas de uma mulher a entrar em lenta decadência, mas a recusar reconhecê-lo. Já não seria a primeira vez que um homem a tentava matar, depois de ela tirar a roupa e ver a mercadoria carnal pela qual estava a pagar.

E o que é a sombra de um cadáver?

Os saltos de Isabella percorreram o seu pequeno quarto, primeiro seguidos pela sombra e depois atirados para o canto oposto. Eram demasiado altos, demasiado brilhantes, demasiado tudo. E eram sempre os mesmos. A sombra conhecia-os quase tão bem como a Isabella, o barulho que faziam ao percorrer o soalho de madeira, os sítios onde estavam mais gastos e já não brilhavam, os remendos bem disfarçados que já quase tinham feito desaparecer os sapatos originais. E o vermelho. Tão vivo, tão sensual, tão marcante. Tudo o que a sombra não era. Mas também um vermelho decadente e repulsivo, um vermelho miserável. Mais do que aquilo que a sombra era.

“Sabes, as meninas assustam-se muito contigo.”, comentou casualmente Isabella enquanto sentava o homem na cama e andava descalça pelo quarto, provocante, a sombra a dançar atrás dela e com ela, a acompanhar e a imitar todos os movimentos, numa sintonia tão perfeita que não era possível dizer quem guiava e quem seguia. Quem vivia e quem morria.

E o que é a sombra de um cadáver?

O homem continuava silencioso. Quando Isabella interrompeu a dança e começou a dança do seu ofício, a sombra olhou finalmente para o homem e perdeu a noção de tudo. Sentado na cama estava um corpo sem vida, mas com um coração que batia, uma cara incompleta com uns olhos que viam. Sentado na cama estava um homem que não sentia, ou que sentia demasiado. Sentado na cama estava um homem que a sombra não percebia.

O vestido de Isabella caiu ao lado da cama, dobrando-se sobre si próprio num círculo de tecido de cor desinteressante. A sombra sentiu-lhe o cheiro e a textura, mas ignorou-o, pois a prostituta tinha à sua frente um homem marcado. Os sulcos que lhe percorriam a cara eram aleatórios, mas não pareciam. Linhas irregulares que se estendiam de cima para baixo, ou de baixo para cima, a sombra não conseguia dizer. Os dentes do homem eram visíveis no lugar onde devia haver lábio. Metade do nariz tinha desaparecido, e um dos olhos era completamente branco e seguia os movimentos libidinosos de Isabella sem realmente os ver.
Com os braços, a prostituta rodeou o pescoço do homem e aproximou a cara da dele, sem reagir minimamente à desfiguração. Fixou o azul deslavado do seu olhar no castanho vivo do único olho são do miserável à sua frente e murmurou qualquer coisa que a sombra não conseguiu ouvir.

Beijou-o.

Os braços magros de Isabella tiraram a roupa ao homem com meia cara e ela sentou-se em cima dele, provocadora como sempre. As sombras de ambos misturaram-se, mas a do homem não reagiu. Limitava-se a seguir os vagos movimentos de um homem destroçado, estremecendo com ele ao toque de umas unhas compridas nas feridas da cara.

Quando a sombra de Isabella percebeu que a do homem estava morta, era tarde demais, os corpos já se tinham enlaçado e mexiam-se freneticamente, entregues a uma ilusão de paixão. Os gemidos e os gritos e os suspiros, tudo misturado nas respirações aceleradas de duas pessoas que não se conheciam mas que enquanto se tocassem, se amavam.

De repente o homem soltou um gemido estrangulado e caiu quase inerte e a arfar sobre o corpo da prostituta que, sem dizer nada, esperou que ele se levantasse para se vestir. A sombra conseguia sentir nos seus movimentos que não gostava daquele trabalho. Quando começou pensava que preferia morrer.

E o que é a sombra de um cadáver?

Isabella estendeu a mão, sem esperar que o homem se vestisse. O olhar duro dizia tudo o que era preciso: paga.

“Eu...”, o tom hesitante era sempre mau sinal, mas a sombra de Isabella estava distraída com a sombra morta do homem com meia cara, “Eu só tenho cem euros.”

Sem pensar duas vezes, a prostituta aproximou-se e beijou-o na testa. Talvez tenha sido da cara do homem, ou da honestidade com que ele se perdeu no corpo dela, mas Isabella perdoou-o. Sabia o que era estar sem dinheiro. Estava naquela profissão por uma razão. Ele que tivesse cuidado e não assustasse as meninas.

“Mas e o dinheiro?”

“Pagas para a próxima.” como se fosse haver uma próxima. A sombra sabia bem que não. Isabella não tinha feito dinheiro suficiente para pagar o que devia, no fim da noite. Aquele homem marcado era a sua última hipótese. Mas ela não se importava. Tinha-o feito feliz.

“Como é que sabes que nos voltamos a ver?”

“Eles voltam sempre”, disse ela enquanto o homem saía do quarto, “mais tarde ou mais cedo, mas voltam sempre”. A sombra deslizava atrás dele, mas estava morta. Miserável.

E o que é o cadáver de uma sombra?

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