05/06/2014

Cega?



Gritou. Assustou-se com o desespero do seu próprio grito. Levou ambas as mãos aos olhos sem pupilas, que vertiam lágrimas cegas. No sonho de que acabara de acordar, sonhara que via e que distinguia as coisas pelas cores e pelas formas. Só quando acordou e se viu imersa nas já demasiado familiares trevas é que conseguiu descansar o coração, que ameaçava saltar-lhe do peito. Suspirou, abriu bem os olhos, sem réstia de sono, e nada viu, apenas o negrume de sempre. Sorriu, debilmente, e fechou os olhos. Gritou. Assustou-se com o desespero do seu próprio grito. Levou ambas as mãos aos olhos negros, que vertiam lágrimas brilhantes. No sonho de que acabara de acordar, sonhara que não via, e que nada distinguia no meio da escuridão. Só quando acordou e se viu imersa nas magníficas cores do mundo que a rodeava é que conseguiu descansar o coração, que ameaçava saltar-lhe do peito. Suspirou, abriu bem os olhos, sem réstia de sono, e tudo viu, cheio de cores como sempre. Sorriu, debilmente, e fechou os olhos. Gritou.

bizzar

3 comentários:

Anónimo disse...

Sempre me perguntei como deverá ser escrever acerca de uma personagem cega.

Nomeadamente, é de ter em conta que os olhos de uma personagem são sem dúvida alguma um dos braços direitos do autor. É muitas vezes por eles que o autor descreve uma coisa, paisagem, outra personagem, etc...

Uma personagem cega deverá ser das coisas mais interessantes que existe na literatura. E então se for cega, surda e muda...

Credo... ninguém normal conseguirá escrever com ela. Pena o Saramago não se ter lembrado de uma dessas personagens quando escreveu o "Ensaio sobre a Cegueira" e nos deu um mundo cheio de pessoas cegas... ou se calhar lembrou-se e deu-se conta que não era capaz.

O teu excerto fez-me matutar nisto tudo Rui.

Abraço

Anónimo disse...

Sempre me perguntei como deverá ser escrever acerca de uma personagem cega.

Nomeadamente, é de ter em conta que os olhos de uma personagem são sem dúvida alguma um dos braços direitos do autor. É muitas vezes por eles que o autor descreve uma coisa, paisagem, outra personagem, etc...

Uma personagem cega deverá ser das coisas mais interessantes que existe na literatura. E então se for cega, surda e muda...

Credo... ninguém normal conseguirá escrever com ela. Pena o Saramago não se ter lembrado de uma dessas personagens quando escreveu o "Ensaio sobre a Cegueira" e nos deu um mundo cheio de pessoas cegas... ou se calhar lembrou-se e deu-se conta que não era capaz.

O teu excerto fez-me matutar nisto tudo Rui.

Abraço

Rui Bastos disse...

É fascinante. E eu tive uma colega cega, quando era mais novo, portanto sei um bocadinho mais sobre isto do que muita gente.

O Saramago tinha um propósito muito específico com esse livro, pelo que sei (ainda não o li), e a escolha daquela personagem parece fazer sentido para a simbologia que ele queria.

Mas concordo quando dizes que ter uma personagem cega devia ser qualquer coisa... Aliás, um dos contos que tenho começado, desde há muitos anos, tem exactamente uma protagonista cega!

Ainda bem que isto te pôs a pensar... Abraço ;)